terça-feira, 3 de julho de 2012

Memórias de um recruta... (1)

Quem viveu a experiência da ida à tropa, tem sempre umas histórias para contar.
E, normalmente, até sente prazer em contá-las aos outros.
Agora se os outros estão dispostos a ouvi-las, ou a lê-las, a história já é outra... !
Tudo depende da forma como se contam de viva voz ou se relatam por escrito.
Irei usar, como já fiz noutras circunstâncias, a auto-publicação para as converter em livro. Sem pretensões de natureza literária, porque tendo elas um cunho muito pessoal, só ao próprio interessa reviver as memórias, mesmo que passadas há quase meio século.
Para já, ficam a constar do blog, que irei actualizando e inserindo imagens. Para ver o efeito. Depois, serão adaptadas e desenvolvidas no livro. 
Apuramento para o serviço militar - momento marcante da nossa vida
Foi em tempo de guerra nas antigas colónias que me vi apurado para o serviço militar obrigatório. Estávamos a 29 de Junho de 1964.
E o veredicto a que estava sujeito cada um dos mancebos, face à inspecção militar, gerava sempre as mais contraditórias reacções.
Se num primeiro momento os apurados exibiam a sua superioridade perante os que não tinham aptidões físicas para também ser apurados, logo a seguir se recolhiam na angústia, pensando no tempo em que seriam furtados às famílias,  às namoradas, às profissões, aos estudos, aos amigos e aos locais onde a sua vida se desenrolava.
Apesar de apurado para todo o serviço militar, a verdade é que na ocasião eu não passava de um peso-pluma: 44 kg em pêlo.
E nem fui o mais levezinho que se exibiu perante os fulanos da tropa, naquele salão dos antigos Bombeiros Voluntários do Fundão.
Mas o dia da inspecção militar tinha, na altura, a sua rotina de acontecimento festivo, que nos aliviava das preocupações que haveriam de regressar ao espírito, noutros momentos posteriores.
Arruada com grupos de acordeonistas, almoços em grupo, visita às "capelas" da vila, entendidas estas como as muitas tascas que então existiam e, ao final da tarde, os bailes pomovidos pela "malta da inspecção".
Quando o grupo era numeroso, como foi o caso, num segundo dia tudo se repetiu na parte dessa rotina festiva.
Seguiu-se depois o tempo de espera até ser incorporado. O que aconteceu de 29 de Junho de 1964 até 16 de Maio de 1966. Muito tempo de espera, para mim.
Demasiado tempo, até dar entrada na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, para cumprir a recruta.
O Comandante da Escola
Nessa altura a Escola Prática de Cavalaria era comandada por Vasco C. Ataíde Cordeiro, que exerceu o seu mandato de 1965 a 1967.
A capicua
Logo que o Exército Português “tomou conta de mim”, atribuiu-me um número de matrícula.
Esse número é também designado de número mecanográfico e, no activo ou na reserva, por ele todos os militares passam a ser identificados.
O número de matrícula que o Exército Português me atribuiu foi o 5661665.
Tudo normal, não fora a curiosidade de esse meu número tanto poder ser lido da esquerda para a direita, como da direita para a esquerda.
A chamada capicua.
Curiosamente, era o segundo número com essas características que se associava a mim, pois a minha carta de condução era e é também uma capicua - 61816.
Ora, “… o vocábulo capicua, que na língua catalã (cap+i+cua) tem o significado aproximado de cabeça e cauda, passou a ser usada pelos naturais da região, sempre que deparavam com um número desses, considerado por eles como indicativo de boa sorte principalmente quando se referia a datas (sem pontos ou traços).”
Portanto, um tipo de número com um significado especial. Indicativo de boa sorte.
Verdade ou não, só quem acredita o pode dizer.
Para mim, foi um número que me trouxe a experiência da vida militar que, vista numa perspectiva disciplinadora e de cumprimento de regras, proporcionou ensinamentos sempre úteis para a vida.
Assim saibamos aproveitá-los.
O grupo do Fundão
O Fundão ficou bem representado, na sua entrada na Escola Prática de Cavalaria, porque além de mim próprio, assentaram praça, Carlos Freire e Fernando Agapito, juntando-se depois ao que passou a ser chamado grupo do Fundão, o Robalo, de Aranhas, mas com ligações familiares ao Fundão.
E o nosso grupo haveria de tornar-se bastante conhecido, desde logo porque o Carlos Freire se impôs pelas suas aptidões musicais e pela viola que nunca deixava de o acompanhar. De tal modo, que rapidamente passou a integrar um conjunto musical de Santarém.
Mas outros episódios aconteceram, que nos colocaram perante alguma evidência.
Todo o grupo foi beneficiando dos dotes musicais do Freire mas, no meu caso, até aproveitei bastante a sua integração no conjunto musical de que passou a fazer parte, porque o fui acompanhando frequentemente nas muitas animações de bailes e festas em que o seu conjunto participava, nem que fosse apenas para ajudar a transportar os instrumentos.
O Gato Félix
O grupo de fundanenses foi integrado no 2º. pelotão, comandado por um alferes de nome José Maria Félix de Morais, que nas suas costas identificávamos por "Gato Félix", sendo monitores no mesmo pelotão dois fundanenses nossos conhecidos, o Ramos da Quinta da Caneca e o Raposo do Fundão.
Ora, o Ramos e o Raposo estavam sempre a espicaçar-nos para darmos "o passo em frente", quando o pelotão era desafiado para exercícios mais arriscados.
Isso aconteceu muitas vezes e foi assim que, nos exercícios finais da recruta, fui eu e o Freire a fazermos o "slide" pendurados nas pernas do Domingues (então guarda-redes do Beira Mar e mais tarde treinador do Sporting da Covilhã), num exercício em que um camarada já tinha partido uma das pernas, nos treinos.
Connosco tudo correu bem, felizmente, mesmo quando em plena descida do cabo de aço, nos vemos de caras encostadas, a descer de lado, quando a intenção era descermos em bandeira, ou seja, eu pendurado com a mão direita, a abrir o braço esquerdo e o Freire pendurado com a mão esquerda, a abrir o braço direito. Valeu um empurrão que dei no ombro do Freire, que permitiu endireitar-nos e ficarmos de frente para a descida, podendo largar a roldana em corrida, ao sentirmos o chão debaixo dos pés.
Mas o tempo de recruta no destacamento da Escola Prática de Cavalaria foi pródigo em episódios dignos de registo.
A vida no destacamento
É verdade que a nossa entrada se verificou no edifício principal da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, mas foi no seu destacamento, também na cidade, que a recruta decorreu, durante aqueles 3 quentes meses ribatejanos, de 1966.
As instalações eram bastante antigas, sendo também bastante usados os equipamentos de natureza pessoal e de acomodação, que nos foram distribuídos.
O já referido oficial que nos comandou na recruta era oriundo da Academia militar, tinha ares de menina-amélia e, na perspectiva de quem chega a uma unidadade militar para receber a instrução que nos iria permitir enfrentar o desafio de uma guerra nas antigas colónias, pareciam-nos sempre exagerados os métodos por si aplicados, tendentes ao aperfeiçoamento das diversas práticas militares.
Mas as coisas até deveriam ser mesmo assim, por muito que nos aborrecesse o desfilar entre aquartelamento e áreas de treino no campo, ao ritmo de constante marcar-de-passo com garbo e "cagança", que pareciam ser apenas uma exigência desse nosso comandante de pelotão, o tal menina-amélia que chamávamos de "Gato Félix".
Os chamados "trabalhos de estrada", que mais não eram do que corridas com a pesada espingarda Mauser ao ombro durante longos quilómetros, também se repetiam de amiúde, fazendo desses exercícios esgotantes provas de esforço físico.
E foi no desenrolar de um desses trabalhos-de-estrada que aconteceu o episódio que havia de marcar a nossa permanência no destacamento da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém.
A vacinação em série
Num determinado dia da nossa recruta, recebemos ordem para nos apresentarmos no posto médico. Todos em tronco nu. Seria para receber a vacina, com uma injecção que já nos haviam dito "ser uma dose de cavalo".
Ali chegados, fomos dispostos em grupos não muito numerosos, sempre em fila ou "bicha de pirilau", como acontecia em quase todos os momentos da nossa passagem pelo serviço militar.
Quando chegaram os elementos da enfermaria, um deles começou por limpar a zona da omoplata com um algodão embebido em álcool.
Logo a seguir veio outro e espetou a agulha de uma seringa, que ali ficou cravada um longo tempo, ou pelo menos assim nos pareceu.
Com pelo menos um desmaio pelo meio, por parte de um antigo companheiro mais sensível a injecções ou já sugestionado pelo termo "dose de cavalo", chegaram finalmente os que introduziam o líquido através da seringa.
Finalmente, veio outro a recolher a agulha.
O processo foi algo doloroso e teve alguns efeitos febris nas horas que se seguiram.
Foi-se repetindo, então, o alinhamento dos grupos, até que se cumpriu todo o processo da vacinação em série.
Mas tudo passou, ficando registada mais esta experiência.
O problema das alturas
Num pelotão como aquele em que fomos integrados, havia alguma disparidade entre as nossas alturas, até pelo facto de quase toda a gente ser apurada para o serviço militar, porque a guerra colonial assim o "exigia".
O procedimento habitual nestas circunstâncias era, pois, alinhar por alturas.
Não sendo eu muito alto, havia ainda alguns mais baixos que eu, entre eles um alentejano de apelido Balhé.
Quando em formatura ou em desfile, o Balhé posicionava-se a meu lado ou à minha frente, o mesmo acontecendo quando havia manuseamento de espingarda.
Se era o momento de iniciar uma marcha, com manuseamento da arma, a mesma era projectada para o ombro direito e, com um batimento forte do pé direito, dava-se início à marcha.
Foi num destes exercícios, em que o Balhé se posicionava na minha frente, que a marcha se iniciou com a projecção da pesada espingarda Mauser para o seu ombro direito.
Só que em vez de encontrar o ombro, o ponto de mira do cano da espingarda do Balhé encontrou a minha cabeça, fazendo-me um profundo lanho na testa, que sangrava abundantemente.
Lá fui levado de urgência à enfermaria, para o necessário tratamento, que depois até serviu de pretexto para prolongar a "baixa", furtando-me a parte dos exercícios desse dia.
O tique do Paquito
O Paquito (não fiquei a saber porque era assim chamado), foi daquelas figuras que não passam despercebidas, estejam onde estiverem.
Primeiro, porque estava sempre com chalaças e brincadeiras.
Depois, porque tinha um tique que o fazia notado.
Era um repentino abanar de cabeça, com projecção do queixo para a frente.
E por mais que o quisesse controlar, não conseguia, porque dizia ser hereditário.
Isso veio a ser confirmado quando um dia deixou que fosse hipnotizado pelo nosso camarada que dominava essa técnica, para tentar curá-lo se o tique tivesse resultado de qualquer doença ou acidente, ocorrido ao longo da sua vida.
De facto, aquilo fazia parte da sua génese e nada havia a fazer.
Ora, aos militares é exigido que devem ficar imobilizados quando seja dada ordem de “sentido”… nem que passe um “c…crocodilo pela boca”.
Mas com o Paquito isso não era possível, o que levantou problemas com o instrutor, que no princípio não se cansava de lhe gritar:
- fica quieto… fica quieto… está em sentido !
Ele explicou e tornou a explicar, até que se convenceram que ele era mesmo assim.
Entretanto, o Paquito cortava a barba com uma navalha, tal como eu fazia na altura.
E o surpreendente é que o Paquito nunca se tinha cortado, apesar daqueles repentinos movimentos de queixo e de cabeça.
A lição de judo
Num dos dias de instrução, foram abordadas as técnicas do judo.
Houve exemplificação dos golpes e da forma como podemos contrariá-los, incluindo a forma de cair sem consequências, face às projecções que nos são aplicadas pelo adversário.
Recordo que um dos pormenores quanto à forma de nos defendermos no lançamento ao solo, que nos foi ensinado, é a palmada no chão a anteceder a queda do corpo.
A mesma tem o efeito de esbater ou anular a dor que seria sentida no corpo, transferindo-a para a palma da mão. Pelo menos eu entendi assim as coisas.
Nesse mesmo dia, tal como aconteceu em muitos outros, houve uma pausa a anteceder a formatura do jantar, que deu aso a que se falasse da instrução sobre o judo.
Na parada estavam outros pelotões e, com os que estavam mais próximos, naturalmente que havia uma maior familiaridade com os seus elementos.
Daí resultou que também se tivesse envolvido na conversa do judo, um dos elementos de apelido Carneiro, que me lembro ser de São Romão do Coronado.
Na brincadeira disse-lhe algo parecido com isto:
- Xô, daqui para fora, que a conversa ainda não chegou ao galinheiro…
Foi num ápice que me vi projectado de costado no chão, num golpe de judo feito por um praticante de longa data, atributo que eu desconhecia no Carneiro.
Defendi-me na perfeição com a técnica da palmada no solo, sem qualquer mazela no corpo, mas ficando com a palma da mão inchada, tal foi a violência do batimento.
Importa dizer que foi por mero acaso que eu fiz o batimento com a mão, porque tudo se passou com tal rapidez, que não houve tempo para pensar em técnicas.
Ainda para mais, apenas abordadas naquele dia.
O Mundial de 1966
Todos se recordam que em 1966 se realizou o Mundial de Futebol, em que esteve em evidência o nosso futebolista Eusébio, pela famosa recuperação do resultado de 0-3 para 5-3 contra a Coreia do Norte.
Ora acontecia que a única possibilidade que tínhamos para ver os jogos de futebol do Mundial, era sair do destacamento, onde só havia televisão no bar dos oficiais, e assistir aos mesmos nalgum café da cidade.
Em todo o tempo que decorreu a nossa recruta, muitos fins-de-semana foram passados em Santarém, pois não havia possibilidade para vir até ao Fundão, apesar do grande desejo de estar umas horitas junto da namorada e da família.
Assim, aconteceu muitas vezes que os petiscos surgiram na caserna durante esses fins de semana, convertendo-se uma lata de atum, uns tomates, um pão e uma "bota" de vinho, num apetecível e saboroso banquete.
A "bota" do vinho
No entanto, fazer chegar o vinho até à mesa, tornava-se por vezes num problema que era preciso ultrapassar, se o momento não era o da livre circulação para os recrutas, que apenas em determinadas horas tinham a possibilidade de sair a porta-de-armas, sujeitando-se a rigorosa revista de fardamento, asseio e apresentação pessoal.
Mas tudo ficava simplificado, quando estava de serviço o alferes Bicho, de Castelo Branco, com quem o grupo do Fundão e outros da Covilhã e Castelo Branco se juntavam no comboio, de regresso dos fins-de-semana, confraternizando à volta dos farnéis que sempre eram levados, juntamente com umas garrafas de vinho. E se ele apreciava o tintol !!!
Com ele em oficial-de-dia, lá íamos pedir para deixar um de nós sair pela porta do gabinete e ir à rua encher as "botas" do vinho.
Normalmente autorizava, mas impunha uma condição, recomendando:- vai lá encher a "bota" mas primeiro passa aqui para ver se o vinho é de boa qualidade.
Claro que essa "bota" era logo esguichada pelas goelas abaixo e só depois se voltava a encher as que necessitávamos para o petisco.
O peixe bêbado
Tal como todos os do grupo, o nosso camarada Robalo era dos que estava sempre pronto para o petisco. E também para deitar a baixo uns tintos.
De tal modo que, sendo de apelido Robalo e gostar do tinto, passámos a tratá-lo de "peixe bêbado".
E ele não se aborrecia com isso.
Aliás, era dos que pregava partidas aos outros, mas aceitava com desportivismo as partidas que lhe faziam.
Mais adiante será feita referência à última noite passada em Santarém, em que aconteceu a batalha dos cabeçalhos.
Nela, o Robalo teve uma intervenção bastante activa, sempre de pé sobre a sua cama, que era um beliche superior. Dali comandava as operações e ninguém lhe escapava.
O meu beliche era o de baixo, duas camas atrás.
Em dado momento o Robalo desguarneceu a defesa da sua cama e ausentou-se por uns momentos, aproveitando eu para despejar um cantil inteiro de água, para dentro dela.
Regressei à minha cama, fingindo ressonar, e esperei que ele se deitasse.
Quando a batalha amainou e ele vai meter-se na sua, dá um salto, praguejou, e vai com o seu cantil cheio de água à procura de alguém acordado, para se vingar.
Ao passar na minha cama, olhou e comentou:- este não foi, está a dormir...
Depois de pôr a caserna de novo em alvoroço, o Robalo lá se acalmou e desistiu da vingança. Sentou-se então na cama, onde não podia deitar-se porque estava encharcada e ia dizendo:- quiseste fazer partidas? Foste lixado ! Aguenta !
Mas o Robalo foi também um exemplo de preserverança nos seus estudos, vindo a formar-se em medicina e tornar-se médico muito depois de cumprido o serviço militar.
Uma semana azarada
Aconteceu então um dos trabalhos-de-estrada, num final de tarde à sexta-feira, em que descemos a Tapada das Padeiras e no regresso nos cruzámos com algumas moças, idas dos seus trabalhos.
Houve uns incontidos piropos por parte de alguns dos elementos do pelotão, sendo na chegada ao quartel questionados sobre quem havia dirigido tais piropos. Os autores não se manifestaram, apesar da insistência por parte do comandante e da ameaça de que todos seriam penalizados com o corte de fim-de-semana, até que o Robalo, que nada tinha a perder, visto que não tinha intenção de sair do quartel nesse fim-de-semana, disse ser ele o autor dos piropos.
O comandante não se deixou convencer, pois o Robalo ia perto de si, e a ameaça concretizou-se, cortando o fim-de-semana a todos, para além de uma semana sem autorização para sair do aquartelamento.
Essa situação veio a impedir que todos vissem os jogos do Mundial 1966 realizados nessa semana, entre os quais o Portugal-Brasil.
De entre os que não foram de fim-de-semana, havia alguns recrutas do Porto que, habitualmente alugavam um autocarro, devido ao número substancial de elementos daqueles lados do norte.
E esses, sim, sentiram muito a penalização que lhes foi imposta, até por haver gente casada e com filhos, que se viram impedidos de os ir ver, mesmo com o aluguer do autocarro já pago.
Se o sentimento em relação ao comandante "Gato Félix" já não era de grande simpatia, face à sua controversa personalidade, a partir deste acontecimento passou a existir uma grande aversão, que ao próprio não passou despercebida.
O ataque dos percevejos
As instalações do destacamento eram antigas, já deixei escrito, mas o que tornava as coisas menos agradáveis era o facto de nos darmos conta da existência de parasitas nas roupas da cama, tais como percevejos, que motivaram uma grande desinfecção, que veio a mostrar-se insuficiente, porque tais parasitas estavam metidos na palha dos colchões e o desinfectante ali não chegava.
Eu próprio passei pela experiência de me ver assaltado por essa bicharada, numa noite em que duma baínha descosida da cobertura da cama ao lado, iam saíndo exemplares que procuravam introduzir-se na minha.
Tal aconteceu num fim-de-semana em que o ocupante habitual da cama se ausentou e, talvez por isso, a fome os tivesse obrigado a fazer o assalto.
Com um isqueiro, fui fazendo estalar como castanha assada cada um deles e, quando o gás se acabou no isqueiro, peguei num tubo de cola-tudo e fui deixando colados à cobertura da minha cama todos os percevejos que foram saindo dessa baínha descosida.
Ao nascer do novo dia tinhado colados na cobertura da minha cama cerca de 30 bicharocos.
Chamei então o oficial-dia para lhe mostrar em que condições tínhamos ali o nosso alojamento, tendo então lugar essa grande desinfecção.
Os efeitos do hipnotismo
O tempo foi decorrendo e a festa de final da recruta aproximava-se, havendo um pormenor muito curioso que nunca esqueci:- o de um camarada de outro pelotão ser hipnotizador e ter participado na festa com algumas das suas habilidades, que por vezes também apresentava quando decorria a instrução em horas de serviço, no quartelamento.
Foi, assim, que uma vez "convenceu" um recruta a saltar o plinto,  que nunca tinha conseguido saltar, depois de o adormecer e sugestionado, convencendo-o de que era capaz. E foi.
Num outro dia em que estava esse camarada, eu e o Freire sentados à mesa de um café, a minha curiosidade sobre essa arte, levou-me a interpelá-lo sobre quem seria mais fácil de hipnotizar - se eu ou o Freire. A resposta foi pronta:- tu, por estares tão interessado no assunto, porque eu só consigo hipnotizar quem se deixa sugestionar pelas minhas palavras.
A nossa opinião passou a contar
É sabido que no serviço militar as ordens não se discutem - cumprem-se.
Assim nos ensinavam e assim era por nós cumprido, estivessem bem ou mal dadas as ordens.
Foi por isso com alguma surpresa que recebemos do nossos comandante, através dos monitores Ramos e Raposo, a sugestão para que fosse dada a opinião de cada um de nós sobre o comandante, fazendo-o por escrito, sem nos identificarmos.
Fui um dos que o fez, utilizando a máquina de escrever para tal.
De modo a ser recolhida a carta, sem que se percebesse a origem, eu próprio recolhi a de outros e no meio delas misturei a minha, entregando-as então a um terceiro para as fazer chegar ao comandante.
Aconteceu isto num final de tarde, quando estávamos prestes a iniciar uma instrução nocturna, colocando-me eu em posição estratégica perto dele, de modo a dar-me conta das suas reacções.
E assim aconteceu.
Se algumas cartas lhe proporcionaram sorrisos e abanares de cabeça, uma houve que ele leu, releu, introduziu no bolso, de novo retirou, de novo leu e de novo releu.
Identifiquei perfeitamente como sendo a minha.
Não foi insultuosa a carta que lhe dirigi, mas procurei fazer-lhe ver que a autoridade não se exerce como ele a exercia, valendo-se apenas dos galões.
Nós também éramos homens e devia aprender a lidar com homens, para ter o respeito dos homens.
Dizia-lhe também que a forma como lidara com o problema dos piropos no trabalho-de-estrada, tinha sido de uma grande injustiça.
Nos dias que se seguiram houve uma movimentação frenética por parte dos monitores, procurando descobrir o autor da carta.
Sem êxito, porque nem eu não os companheiros do Fundão o revelaram, se bem que se desconfiasse do nosso grupo.
De qualquer modo, a partir daí aconteceram mudanças radicais de comportamento, por parte do comandante do pelotão.
Passou a almoçar muitas vezes junto dos seus comandados, no refeitório dos recrutas, deixou de ser exigente na ordem unida, passou a confraternizar connosco frequentemente e passou a estar sempre disponível para nos ouvir.
O desenrasque
Uns mais, outros nem tanto, todos aceitavam com desportivismo as partidas que se faziam na caserna - recrutas que acordavam na casa-de-banho ao romper do dia, colchões completamente inundados por algum cantil que misteriosamente aparecia desarrolhado dentro da cama, cabeçalhos que apareciam amontoados no meio da parada, sinfonia  do roncar de algum, amplificada durante a noite num rádio-gravador... etc.etc.
A culminar a recruta e em véspera de abalada, aconteceu a batalha dos cabeçalhos, que deixava a caserna em verdadeiro estado de sítio e os equipamentos em muito mau estado de conservação, fazendo-se depois verdadeiros milagres na sua recuperação ou reposição, para que o espólio se pudesse fazer sem ter que pagar algum dele.
Mas se alguém se dava conta de que lhe faltava qualquer peça, apenas "se desviava" uma dum qualquer sítio onde existisse, chegando-se ao final com os inventários perfeitamente certos.
A tropa tinha essa regra de ouro - cada um tinha de se desenrascar.
O jantar de despedida
Com o aproximar do fim da recruta, surgiu o alvitre para que se realizasse um jantar de despedida, englobando também os monitores e o comandante do pelotão.
Foi dito na altura que a iniciativa tinha sido do próprio"Gato Félix", para arranjar pretexto a umas palavras de circunstância que justificassem as suas anteriores atitudes.
Verdade ou não, quem não deixou passar a oportunidade para se revelar como autor da tão falada carta, fui eu.
Houve alguma surpresa, mas ao mesmo tempo confirmou-se ali a desconfiança que havia em relação ao grupo do Fundão.
Afinal não tinha sido o grupo, mas um só elemento do grupo.
Não recordo se houve algum tipo de justificação, mas lembro-me perfeitamente desta frase:- gostava de trocar contigo umas impressões sobre o assunto, antes de nos despedirmos.
Respondi simplesmente:- estou à sua disposição.
Mas tal conversa nunca chegou a acontecer e lá parti para Vendas Novas, para frequentar o curso da especialidade.
Vim a constatar mais tarde, na chegada a Vendas Novas, que comigo levava um parceiro clandestino - nada menos que um percevejo.
Um cartão de visita da Escola Prática de Cavalaria, de Santarém, para a Escola Prática de Artilharia, de Vendas Novas.
Mas a forma como ele se apresentou, será aqui contada mais tarde, noutros capítulos.
Entretanto, aqui fica a letra de uma cantiguinha gentilmente cedida por J.A.V.Freire, irmão do saudoso Carlos Freire, com o título muito sugestivo de:
NÃO SEI SE ERA PULGA OU SE ERA PERCEVEJO… !
A pulga e o percevejo
Fizeram ´ma combinação
Cantar uma serenata
Debaixo do meu colchão
      Torce e retorce
       Procuro e não vejo
      Não sei se era pulga
      Ou se era percevejo
Uma noite eu sonhei
Que comia um bom queijo
De manhã quando acordei
Mastigava um percevejo
      Torce e retorce
      Procuro e não vejo
      Não sei se era pulga
      Ou se era percevejo
A pulga toma chá
O percevejo o seu café
O danado do piolho
Também toma o seu rapé
      Torce e retorce
      Procuro e não vejo
      Não sei se era pulga
      Ou se era percevejo
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2 comentários:

Fernando Ferrão disse...

Por acaso só agora vi o seu post. Acontece, que também fiz parte desse pelotão na recruta do CSM da EPC em Santarém. Sorri diversas vezes ao recordar aquilo que também comento com amigos. Voltei a encontrar Felix Morais no RCAV 6 no Porto, agora como Tenente. Completamente diferente do de Santarém, comentamos muitas vezes peripécias do Gato Felix e os seus gatinhos amest rados. Já não recordava o teu nome, mas quando vi a tua foto de imediato reconheci a pessoa. Soube do Freire, que quando o pelotão formava em U, ficava a meu lado onde jogavamos à moedinha para ver quem pagava a bica. Obrigado por me fazeres recordar esses tempos já distantes. Fica com um abraço forte

ARVaz disse...

Dirijo-me ao Fernando Ferrão, fazendo votos de que leias este comentário.
Só agora vi o teu.
Fico sempre muito contente quando me chegam notícias de antigos companheiros, como aconteceu agora.
Estou no Facebook com esta ligação: www.facebook.com/#!/alvaro.vaz.44
Espreita a minha página ou manda um email para o endereço que está na página inicial do blog.
Um abraço e votos de que haja mais contactos.